“Quem simpatiza pára” (Bernardo Soares). Em Saramago páro. Faz hoje 4 anos que partiu para outro lugar: “O que fizeste do teu irmão?” (repete em “Caim”). “Terra do Pecado” é o seu primeiro livro. Mudaram-lhe o título, di-lo o autor no “aviso” inicial. Ele queria ser escritor. Diz. E termina: “…o futuro não terá muito para oferecer ao autor de ‘A Viúva’.” (Caminho, 9ª ed. p.9). Matamos o irmão, nós incluídos. E isso é estar fora do paraíso. As nossas vidas. A crise. Como sair?
Na Fundação José Saramago, o dia é de trabalho cumprindo assim aquele a que chamam "Mandato Saramago". Para assinalar a data, destaco da programação: o filme “O Homem Duplicado”, adaptado livremente a partir do seu livro homónimo. Estreia amanhã nas salas de cinema portuguesas e brasileiras. E das 10 às 18 horas, a entrada na Casa dos Bicos é hoje livre. Gosto do site da Fundação.
Há 2 anos, a 13 de Junho, lançou-se a ideia do “Dia do desassossego”. No discurso da Presidente da Fundação Saramago, por sinal dia de anos de Fernando Pessoa e dia de santo António: “Lançamos a iniciativa de um Dia do Desassossego que talvez a câmara assuma e se faça em Lisboa um Bloomsday universal e pessoano…”. Estavam a ouvi-la Mário Soares, Maria Barroso e Manuela Eanes, o presidente da Câmara Municipal António Costa, o secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas, a deputada Gabriela Canavilhas, o político Jerónimo de Sousa, os poetas Vasco Graça Moura e Nuno Júdice, a escritora Nélida Piñón, que veio do Brasil para representar na cerimónia a Academia Brasileira de Letras, o cineasta Miguel Gonçalves Mendes, os editores Zeferino Coelho e Manuel Alberto Valente. Eduardo Lourenço enviou uma mensagem que foi lida durante a cerimónia.
Vasco Graça Moura, que durante oito anos trabalhou na Casa dos Bicos quando ali estava instalada a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, achou “extremamente interessante que ela tenha passado de um sítio onde se cruzavam ideias sobre celebrações do passado português para um sítio onde se encontra depositada uma obra e sobretudo uma memória que é extremamente importante na nossa cultura actual”.
Saramago dizia-se não crente. Mas porque terá “parado” a vida inteira nos textos bíblicos para os virar do avesso?, perguntou outro dia Eduardo Lourenço. Sim, “crente” não define uma pessoa. O que define uma pessoa – e a pessoa define-se por ser indefinível – é ser aquela e não outra. E ao nome “Saramago” não há quem fique indiferente. Eu também cheguei a pensar que se pode pensar sem preconceitos. Mentira. Ninguém parte do zero, traz consigo uma história, ideias, opiniões sobre as coisas. Pre-conceitos; uma espécie de óculos com os quais eu me vejo e vejo o resto. Tirar os óculos é ficar com outros. A própria cegueira é um forma de ver (inimaginável para mim, que por enquanto ainda vejo). A obra e o homem partilham uma cumplicidade indizível, no entanto é impossível reduzir uma pessoa àquilo que fez, faz e fará. No caso, Saramago às linhas que escreveu. Ao ouvir “Saramago” habituei-me a ouvir Memorial do Convento. Parei no final do primeiro capítulo. Achei que era ofensivo. A Deus e à Sua Mãe. Parei. Veio o Nobel.
Vale o que vale. Insisti então, um pouco ao calhas: “Ensaio sobre a cegueira”. Devorei. Curioso: radicalmente diferente do que antes tinha lido. Nem uma palavra sobre Deus. Ou Mãe. Poder descritivo puro. Domínio da palavra. Nem uma a mais, nem uma a menos. A questão da pontuação é para mim um dinamismo que ao soltar o texto dessa outra forma, faz a linguagem elástica e provoca a interação. Uma espécie de liberdade.Logo no começo do livro, Saramago dá-nos um “semáforo” como ninguém. Sem lirismos, quase de um modo matemático, conta o que se dá a ser visto. E o livro corre assim até ao fim.
Embora se possa retirar das obras no seu conjunto uma mensagem, ela não é linear. Uma invariante – salvo o ciclo que começa precisamente com este ensaio, mas que depois volta a ser interrompido, e Caim, o seu livro preferido, acaba por ser uma síntese (Aufheben) à maneira hegeliana – é a sua visão da Igreja. Melhor, de uma certa forma de ser Igreja. Saramago acaba por reduzir a Igreja a uma parte dela, como uma moral de fracos, para usar a expressão de Nietzsche. Mas Saramago não sabe que a Igreja não é uma moral.
Não dizem as religiões todas o mesmo; amor, justiça, paz. Se é só para isso, para que serve a Igreja? E às vezes até contribui para o contrário de tudo isso! Por isso tanta amargura e desentendimento. Falta de cuidado. Pobres dos pobres: a eles se dedicam as Madres Teresas. O desejo de conhecer é uma grande fome. E são muitas as vezes em que o mascaramos. Quem de nós quer escancarar as portas dele? Todas?
O nódulo do Cristianismo está na carne. É isso que custa engolir. Por isso custa tanto dizer a palavra “belo”, diz a irmã de Isaura (José Saramago, in "Clarabóia", Caminho, 2011). Tia Amélia, ainda chocada pela sua incapacidade de há pouco, quis esclarecer: “ –Percebo eu. É como a palavra Deus para os que crêem. É uma palavra sagrada.”
E ao lado de quem aponta a luz, é bom quem aponte a epidemia de cegueira que proliferamos. Importa sair de caverna e voltar a ver. E um livro é "apenas" um livro. A cultura, a vida humana, depende de cada gesto meu, dos meus desassossegos. O livro impossível, dele (como disse na Culturgest quando apresentou "Caim"). No filme “José e Pilar” a propósito deste desassossego o nobel afirma: “Deus não existe! Quem quiser acredite, pronto!”