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"expresso" cada manhã
Maria Guadalupe e Eduardo Lourenço, ontem na Versailhes, no 91º aniversário deste espanto de Pessoa
fotografia de Fernando Figueiredo
Eduardo Lourenço ontem ao final da tarde tarde num café de Lisboa. Foi um encontro naquelas coincidências que acontecem. Puxei-o para a nossa mesa enquanto ele esperava a sua companhia. Curioso: fazia 91 anos. Que festa! Um bom momento. Apareceu logo a seguir quem ele esperava, e sentou-se na nossa mesa. Depois, também sem esperar, entrou o meu fotógrafo de eleição. Rui Ochoa. Ajudou à festa. E registou as 91 Primaveras. A seguir foi tudo para as suas vidas. No fim, mesmo no fim, pensei que gostaria de escrever aqui alguma coisa. Disse-lhe: “amanhã apetecia-me escrever sobre os seus anos…mas não sei que diga”. E não me preocupei.
Mas a ele, com a sua insustentável leveza de ser, tudo lhe interessa. E nada deixa escapar. Ao meu desejo, e na hora, parou. E pôs aquela cara de olhos de “ouvir”. Que tanto vibra com um jogo de futebol, como com uma intervenção pública que tenha que fazer, como aconteceu no painel final da conferência sobre a ditadura, que há dias teve lugar na Gulbenkian. Cabia-lhe então apresentar os ex-presidentes Jorge Sampaio, Ramalho Eanes e Mário Soares. "Eles não precisam de apresentação. Eu é que precisava que me apresentassem....a mim mesmo." Por isso reconheceu uma quase desnecessidade a sua presença ali. Mas discursou como ninguém, porque "nada se faz sem paixão" (palavras de Hegel citadas por ele na sua intervenção) e dessa poucos têm. Pelo que disse, situou-se no registo do "quis saber quem sou, o que faço aqui". Está sempre nesta onda. Mas com uma simplicidade e disponibilidade esmagadoras, simples, a transbordar de ternura e compaixão.
Mas voltando ao meu desejo. O aniversariante estava intenso - uma espécie de 91 da armada - num momento do tempo mas fora do tempo ( T S Elliot). Nunca o tinha visto tão de perto, de lado, nos olhos, que estavam a olhar não sei para onde. Mas estavam, estavam. E estavam verde transparente. Espanto total. Camões puro. Criança. Percebi que ia dizer qualquer coisa. Uma das suas rajadas plenas, paradoxais, que vão rasgando e abraçando o mistério no qual nadamos. Peguei logo no guardanapo (ainda ando péssima da cabeça depois do acidente de há dias; dou pouco para a caixa).
Ele ditou-me o que poderia escrever hoje. Disse-o entre paragens, recuos e alterações, assim: “ Fazer 91 anos como se acabasse de nascer! Fazer quase 100 anos é o mais suportável dos pesos. Só a morte dos outros é que é insuportável. É o insuportável absoluto! Acabar de nascer é nadar numa inconsciência a nenhuma outra parecida. A inconsciência, diz Fernando Pessoa, é aquilo que a consciência nunca consegue recuperar."
Ele fez anos. Eu recebi também o presente. Um homem que suporta o que é absolutamente insuportável muda, muda-nos. Na despedida, para ele não ir carregado (já levava um saco com a nova edição do “Livro do Desassossego”, pesado, claro…), ofereci-me para lhe guardar a bandeira rosa das Europeias, que tinha tido nas mãos, nessa mesma tarde, momentos antes, na célebre descida do Chiado.
E como nesta semana lembramos Mário de Sá Carneiro, registo aqui um dos poemas preferidos do Professor “fugitivo”: “vou a todas”, costuma dizer . O poema tem tudo a ver com o belo momento de uma festa de anos inesperada. Fugitiva, de rosas perfumadas diante de uma Presença. Paris, Dezembro, 1915:
«Que rosas fugitivas foste ali:/,Requeriam-te os tapetes – e vieste…/– Se me dói hoje o bem que me fizeste,/É justo, porque muito te devi.//Em que seda de afagos me envolvi/Quando entraste, nas tardes que apareceste –/Como fui de percal quando me deste/Tua boca a beijar, que remordi…//Pensei que fosse o meu o teu cansaço –/Que seria entre nós um longo abraço/O tédio que, tão esbelta, te curvava…//E fugiste… Que importa ? Se deixaste/A lembrança violeta que animaste,/Onde a minha saudade a Cor se trava?…» (“Último soneto” in Poemas Completos. Edição Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim – 2001).
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